segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Nem só de passagem...

"Nós que passamos apressados pelas ruas da cidade merecemos ver as letras e as palavras de gentileza". Marisa Monte

O Hospital de Pronto Socorro João XXIII fica em uma área privilegiada de Belo Horizonte. É o que mais e melhor atende traumas em todo o estado de Minas Gerais. Porém, basta ficar lá em frente por algumas horas para ter visões nem tão privilegiadas assim. Nesse Hospital, são atendidos desde indivíduos de baixíssima renda, até os provenientes de camadas mais altas da sociedade. O que essas pessoas têm em comum?

Uma emergência.

E entre aqueles que vão e que voltam pra casa, entre aqueles que vão e que se dirigem para um outro lugar, entre aqueles que não vão a lugar algum, existe alguém que testemunha todas as entradas e saídas, mas que passa muitas vezes sem ser notada: a porta do João XXIII.

A porta de um hospital como esse já presenciou muitos acontecimentos marcantes. Ela viu cenas bem alegres e outras muito tristes, mas não se emocionou. Talvez porque ela é a soma das memórias e sentimentos de todos os médicos, pacientes, enfermeiros e funcionários do João XXIII. E, também, porque ela sente na pele as angústias e os prazeres dos pedestres, andarilhos e outros desconhecidos que passam na sua frente. Deve ser por isso que ela assiste a tudo, mas não derrama uma lágrima: ela já viu demais.

A identidade da porta do João XXIII se define através da personalidade de todos aqueles que entram e aqueles que saem. Todos aqueles que talvez nunca a observaram, aqueles que passam correndo no dia-a-dia, aqueles que encostam nela, dormem bem perto, aqueles que passam noites encostados e com frio. Ela, muitas vezes é ignorada. Quando perguntamos a muitas pessoas sobre seus detalhes, sim, aqueles que adentram correndo cumprindo mais um dia de trabalho, muitos não conseguiram responder nem sua cor. Talvez ela não tenha cor. Mas, principalmente, ela é constituída por aqueles que ali permanecem.

A porta desse hospital tem a mesmíssima simpatia do baleiro que chega ali às 5 horas da manhã, ainda escuro, e que só vai embora depois de atender milhares de pessoas todos os dias. Não é que a porta tenha assimilado as características do Sr. Dirceu. Foi o Sr. Dirceu que assimilou o jeitinho de ser da porta. O baleiro, ao passar seus dias, suas tardes e muitas das suas noites, em uma jornada de trabalho maior do que de qualquer médico, em frente àquele hospital, acabou virando porta. Ao entrar e ao sair, é preciso passar por ele (“chiclete, pipoca, cafezinho, refrigeranteeee?”). E é por isso que se um dia o Sr. Dirceu mudar de ponto, a porta do João XXIII vai perder não apenas mais uma de suas mil pessoas, vai embora uma parte de si: pois aqueles que freqüentam esse hospital, vão sentir a falta de algo (mesmo que eles não saibam exatamente do quê).

Aquela barraquinha verde, em frente a uma porta, jamais seria tão marcante se estivesse em outro lugar. Sr. Dirceu já viu de tudo. E como a porta, não mais se emociona. Os policiais, motoristas de ambulâncias, toda a equipe que com a ambulância caminha pela cidade, eles mudam de ponto, de hospital, de lugar. Mas, muitos deles não são notados. Não incorporaram aquela vida de Sr. Dirceu, aquela vida de porta de um hospital de urgência.

Não é só o Sr.Dirceu que trabalha em sua barraca. Duas filhas também o ajudam. “É que meu pai já está ficando velho, ele não reclama, mas desde pequenas vemos a sua cara, ao chegar em casa altas horas da madrugada”. Mas, não precisamos de lupa, para perceber que as características da porta só afloram no dono do “estabelecimento” como ele mesmo chama.




É por isso que as pessoas não percebem a porta, o Sr. Dirceu, e até mesmo algumas de suas peculiaridades. Com uma média de mais de 450 pacientes atendidos por dia, ou quase o dobro desse número em feriados prolongados, em 34 anos de existência mais de quatro milhões e meio de pacientes já adentraram as portas daquele hospital. Ela já não sente mais. Está cinza. Cansada. Como o Sr. Dirceu de Alvarenga, 64 anos, pai de 4 filhos, casado há 42.